Por Lucas Campêlo
30/11/2020 - 09:00SÃO PAULO — Os traços econômicos das cidades brasileiras evidenciam profundas desigualdades que permeiam nosso cotidiano. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, um décimo da população brasileira concentrava 43% dos rendimentos financeiros mensais produzidos em todo país. César Sampaio, professor na rede pública estadual de São Paulo e historiador, declara que há um fosso econômico dividindo a sociedade brasileira. Para Daniel Gomes, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade de Brasília (UnB), as diferenças no Brasil vão além da questão econômica, alcançando fatores raciais e sociais como questões de gênero.
Segundo Daniel, existem momentos de crise em que essas desigualdades tornam-se notórias e impossíveis de serem ignoradas. “A crise é um momento crítico no qual as tensões ocultas da nossa sociedade tornam-se evidentes”, explica. O candidato a vereador em São Paulo pelo PSOL, Renato Assad, defende que é nesse período de crise e de desigualdades acirradas que o fenômeno conhecido como polarização ocorre. “Quando você tem uma crise, começam a aparecer contradições da vida cotidiana. Então, surge uma polarização acerca das interpretações da realidade que vão propor uma saída para a crise pela esquerda ou pela direita”, diz.
“Existem polarizações em diferentes intensidades, que podem levar a discussões saudáveis, guerras ou conflitos étnicos e sociais. Todas elas aparecem em períodos de crise”, defende Renato. Para ele, o nível de “barbárie” presente em uma sociedade define qual caminho a polarização irá seguir, seja o de aprimorar o debate democrático ou favorecer o extremismo.

“Ao mesmo tempo em que o debate de ideias é bom, ele pode nos levar a lugares errados”, declara o professor César Sampaio. Segundo ele, um tipo de debate marcado por oposição e adjetivação e a inexistência do diálogo são características comuns dos momentos de polarização. “Há épocas onde os partidos discutem em uma mesma linha, discordam em um ponto ou outro, mas a polaridade acontece quando há visões completamente opostas de projetos que nos levam a um ponto onde não há diálogo”.
De acordo com a pesquisa Satisfaction with Democracy, realizada em 2019 pelo centro de investigação Pew Research Center, há um sentimento de descrença em relação ao poder da política e da democracia crescendo entre os cidadãos do Brasil. Segundo o levantamento, 56% dos brasileiros estão insatisfeitos com a forma pela qual a democracia funciona. Na média mundial, a porcentagem de pessoas insatisfeitas com o sistema também ultrapassa os 50%. "Há uma queda acentuada na crença do poder da política de transformar as coisas e uma insatisfação geral com o modelo político no mundo”, diz César.
Para Daniel Gomes, as sociedades tendem a reagir de forma semelhante durante os períodos de polarização. O professor enfatiza que outros grupos na história já optaram por flertar com raciocínios extremistas durante momentos de crise, seguindo pelo caminho da oposição arbitrária e negando saídas pelo diálogo ou por soluções democráticas. “Foi o caso da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler, que na busca pelo fim do período de caos, apoiaram a ascensão do totalitarismo”, afirma.
Caminhos no Brasil
Segundo Daniel , há uma guerra de “nós contra eles” enraizada no Brasil muito antes das eleições dos governos petistas ou da ascensão do atual presidente Jair Bolsonaro, que são os protagonistas dos conflitos políticos dos últimos 20 anos. Gomes propõe a ideia de que existiram diferentes formatos de polarização no Brasil, como por exemplo, os confrontos ideológicos entre senhores e escravos no período colonial. “O que eu quero dizer é que o nós-contra-eles vem de muitos anos na história do nosso país".
Rosinei Naves, mestre em História Econômica pela USP e professora na Universidade São Judas Tadeu (USJT), afirma que a polarização brasileira é um fenômeno que pode ser notado desde os tempos do império e que as marcas profundas que vemos nos dias de hoje são resultado das diferenças e desigualdades que se difundiram desde então. “Uma das consequências mais predominantes é que, no Brasil, uma parte da sociedade se curvou a uma elite mundial e manteve a cultura escravocrata entre nós’, diz.
“Será que a polarização no Brasil foi inventada nos últimos vinte anos pelos políticos?” - Daniel GomesO professor César Sampaio defende que os conflitos que vivemos hoje derivam, em grande parte, de acontecimentos internacionais do século XX, como a Revolução Industrial, a Revolução Russa de 1917 e a Guerra Fria. A noção que as pessoas possuem hoje em dia sobre capitalistas, comunistas e socialistas (termos muito usados nos debates públicos) foi herdada destes momentos, conforme explica. “O que acontece hoje é praticamente um retorno às ideologias da Guerra Fria”. Até mesmo a pejoratividade e o preconceito existente a respeito destes termos é uma herança de conflitos passados, como elucida César. “Achávamos que depois da queda do muro de Berlim isso iria morrer. Até ficou escondido por um tempo, mas hoje, existe uma retomada de discussões semelhantes. É interessante como a gente volta a discutir coisas que eram do século passado”, reflete o professor.
Daniel Gomes também acredita que o atual cenário de polarização no Brasil é uma consequência das contradições políticas petistas dos anos 2000, que não estabilizaram o parque industrial do país e priorizaram um crescimento da classe trabalhadora focado apenas no consumo, e não no fortalecimento da renda. “Há sim coisas em comum com os séculos passados, mas não podemos esquecer que o momento atual deriva, em grande parte, das próprias contradições da última década”, diz. “Precisamos tomar cuidado para não esquecer o que é próprio do nosso tempo”.